domingo, 4 de agosto de 2013

Inverno

Eis um entardecer de inverno sobre o mar tranquilo;
É já meu espírito
Entardecer de inverno sobre o mar tranquilo.

Me alcança um clamor de profundezas
Que continuamente se elevam.
Me distrai a brisa.

Ao redor tudo flui e passa,
Não este penhasco sólido
– minha consciência em vigília.

domingo, 20 de janeiro de 2013

Passeio de aerolito

Homens graves nos impuseram a lei
Da gravidade. Não se podiam elevar
Por causa de sua desconfiança,
Preferiram perscrutar com os olhos
O que poderiam na alma acolher

De pouco vale especular à sombra
Da macieira, onde seus pomos pendem.
As maçãs sabem guardar seus segredos.
Ao seu redor sibilam as serpentes
Promessas de recompensas ambíguas

É por estar maduro que o fruto queda.
Amadurecido é o fruto em estado acabado,
Vazio de desabrochar, em seu último suspiro,
E insensato é quem julga uma coisa por seu fim:
A ver em tudo decadência está condenado.

Erga os olhos e estenda a mão.
- Colher o fruto sempre foi um gesto sagrado -
Prove o néctar cuja doçura nos deixa mais leves
E eleve-se velozmente para as alturas
Para um passeio de aerolito.

segunda-feira, 1 de outubro de 2012

A identidade e a máscara, um ensaio sobre A Gaivota de Anton Tchekhov


A tensão entre o individual e o social é um tema recorrente nas obras de Tchekhov, tanto em suas peças como nos contos. Em instâncias diversas da vida em sociedade, o autor reconhece o conflito entre anseios pessoais e exigências sociais, que se manifesta através da criação de máscaras, de personagens de que nos servimos nas relações com outros indivíduos. Em contos como “O gordo e o magro” e “A dama do cachorrinho”, por exemplo, Tchekhov nos elucida, embora sob diferentes aspectos, como a posição que assumimos diante da sociedade pode interferir nas relações pessoais. No primeiro, acompanhamos de que maneira uma descontraída conversa entre amigos de infância pode adquirir as formalidades de uma audiência quando são reconhecidas as posições sociais desempenhadas por aqueles homens – isto é, quando as personagens que representamos diante da sociedade assumem o primeiro plano nas relações. A cumplicidade da infância compartilhada se converte em distância entre classes; a cordialidade, em bajulação. É possível perceber a influência dessa mesma tensão em “A dama do cachorrinho”. No entanto, é entre dois amantes que se estabelece uma distância em função de suas personagens sociais. O casamento arranjado de Anna, que determina sua posição social, assim como o já desgastado casamento de seu amante, que, por sua vez, lhe confere sua máscara de homem respeitável, impossibilitam e, ao mesmo tempo, alimentam seu romance secreto. A superficialidade da relação que mantêm, que lembra mais uma fuga de seus papéis sociais do que uma convivência repleta de afinidades, como seria de esperar de um romance, nos faz pensar se não é pelos personagens que representam um para outro que estão efetivamente apaixonados. Seja como for, é o conflito entre os anseios pessoais e as exigências sociais o que conduz o conto. O impasse em que se encerra parece refletir a impossibilidade de solução para esse dilema inerente à situação humana. Aliás, em “A dama do cachorrinho”, Tchekhov desvenda, de modo excepcional, o modo como os personagens assumidos pelos indivíduos não se restringem somente à manutenção da posição social e atingem até mesmo as relações pessoais – característica que aproxima o conto de sua peça “A Gaivota” –, pois parece ser a busca pela representação de certos papéis, de fantasias que idealizamos, para escapar ao tédio ou para ornamentar nossa imagem, o fio condutor dessas histórias. Gúrov, o amante da dama do cachorrinho, Anna, é traído pelo próprio personagem que buscava representar em sua aventura amorosa. De início, vemo-no bancar o indiferente diante da crise de consciência de Anna, com quem de início pretendia viver uma relação casual, porém, uma vez experimentada essa embriaguês da vaidade e de fuga da rotina, Gúrov passa ao temeridade de um homem que viaja em busca de sua amada. As personagens que buscamos representar frequentemente voltam-se contra nós, parece sugerir o autor.
Na peça “A Gaivota”, de maneira semelhante, são as personagens que os indivíduos anseiam representar, ou preservar, os seus próprios carrascos: Trepliov e Ninca buscam a concretização de suas posições como escritor e atriz; Trigórin e Arkádina, por outro lado, afligem-se com a possibilidade de caírem na obscuridade, isto é, perderem essas mesmas posições, mesmo que o escritor não seja tão explícito nessa preocupação quanto a mãe de Trepliov, que, a todo momento, busca reforçar e confirmar, mediante as opiniões das pessoas ao seu redor, sua posição como atriz famosa e sua aparência jovem, superficialidades que talvez sirvam para compensar sua carência de identidade. Trigórin, de maneira diversa, expressa em várias ocasiões o desejo de escapar ao seu papel de escritor, refugiando-se em ocupações comuns, como caminhar ou pescar, mas é possível que se tenha deixado revelar em sua conversa com Nina, quando afirma que é compelido a escrever constantemente, como se fosse um vício, um prego cravado em seu cérebro – e, em seguida, pragueja contra vaidade.
Enquanto Arkádina e Trigórin poderiam representar o temor diante de um abismo que se aproxima, a dissolução de suas personagens sociais e, com isso, de si mesmos, é deste mesmo vazio que Nina e Trepliov buscam emergir para conquistar suas posições. Talvez por isso seja o nada, a ausência de formas distintas, de identidades, o tema da primeira peça que realizam. De certo modo, é verossímil afirmar que é a busca por esse “lado de fora”, por emergir do vazio de suas existências particulares para o reconhecimento social, o que põe em movimento as personagens em “A Gaivota” – como um impulso autônomo e inevitável, assim como o que conduz um pássaro em direção a um lago, superfície espelhada, que reflete, assim como o olhar do outro, e que também aplaca a sede.
Em certo sentido, pode parecer reveladora a compulsão de Trigórin por fixar a fluidez constante da existência em arte, em objeto transcendente, com suas coleções de frases, metáforas e impressões, sobretudo quando nos lembramos do pedido que fez a Sórin para que empalhasse a gaivota abatida por Trepliov, pedido do qual, posteriormente, não se lembra – seria esse esquecimento uma autonegação, uma cegueira do seu próprio conflito?
No desfecho, Tchekhov nos coloca diante de duas possibilidades de conclusão para os anseios daqueles dois jovens, Nina e Trepliov, ambos aparentemente desventurados, mas que, apesar disso, expressam trajetórias perfeitamente opostas: uma na direção do ser, a outra, do não-ser. Trepliov inicia sua carreira como escritor, adquirindo até mesmo certo renome, mas suas obras carecem de substância, parecem exprimir o vazio de uma identidade apenas aparente, de uma máscara, de uma imagem carente de essência. Seu suicídio, ao final da peça, concretiza esse movimento em direção ao não-ser, ao vazio, devido ao fracasso de Trepliov em constituir uma identidade verdadeira. Já Nina, embora à primeira vista sofra um desfecho semelhantemente desafortunado, com uma carreira sem notoriedade, sem o glamour a que ela aspirava, prossegue. Em sua última conversa com Trepliov, suas palavras de adeus remetem às de alguém que parte em uma jornada; contudo, não em busca de uma meta, de um lago, como uma gaivota, mas sem ponto de chegada, apenas de partida. Nina parece movida por uma força interna e não em função de algo externo, de reflexos, de opiniões, de máscaras. Seu movimento caracteriza-se pela força e autodeterminação próprias do ser, da identidade que se realiza na ação, não na aparência. Ela rejeita o desfecho pressagiado por Trepliov e Trigórin, renega seu papel como gaivota, sua desdita, e afirma sua identidade como atriz. Sua despedida tem caráter de prelúdio. Recordemos, por fim, as palavras da jovem atriz:

“Eu sou uma gaivota... Não, não é isso. Eu sou uma atriz. É isto!”
“Agora não sou mais assim [o tema para um pequeno conto, uma gaivota]... sou uma atriz de verdade, represento com satisfação, com entusiasmo, uma embriaguez me domina. (...) o tempo todo caminho e sinto que meu espírito se torna mais forte a cada dia (...) o que importa não é a glória, não é o esplendor, não é aquilo com que eu tanto sonhava, mas sim a capacidade de suportar. (...) Eu acredito e, assim, nem sofro tanto e, quando penso na minha vocação, não sinto medo da vida.”

sábado, 26 de maio de 2012

A mariposa e a lâmpada

Alça alvoroçado voo
E ávida avança veloz
Malfadada mariposa

A luz que te provoca
Em liso vidro impõe
invisíveis liames

Lépida acerca-se
Da lâmpada, fascinada
Ergue voo novamente
Chamuscada

Investe e teima
Cessa e volve
Descreve arbitrariamente
Descompassada dança

Ora é a mariposa que se queima
Ora quem se queima é a lâmpada.

segunda-feira, 21 de maio de 2012

O castelo

O homem é aparentemente o único animal que se aflige com o futuro, sobretudo porque nenhum outro sofre tão profundamente a ação do tempo quanto ele. Não só isso: somos inexoravelmente compelidos a dirigir esse inevitável processo de mudança na direção de nossas aspirações. Esta é a mola que impulsiona principalmente os jovens: tornar-se outro, alguém diferente, melhor, conforme os critérios de cada indivíduo. A imprudência ou a autoconfiança podem transformar essas vãs esperanças em um castelo, onde nos vemos entrar triunfalmente em algum tempo futuro – e reinar. Frequentemente aí se detém nossa fantasia, e não ousa sequer espiar a seguir a decadência que inevitavelmente se abate sobre todos os seres.

Mas quão alto convém deixarmos alcançar as nossas aspirações? A imaginação costuma ser um arquiteto ambicioso, ergue numerosas torres, altíssima muralha, portal imponente. E assim nos lançamos audaciosamente contra as forças do destino, para tornar sonhos concretos. Quem sabe temerariamente? Pois, exceto para poucos indivíduos, cujas existências não são mais que um sorriso irônico da probabilidade, o acaso é mau engenheiro, um teimoso mestre-de-obras que insiste em adaptar o projeto às vicissitudes do terreno. Frustrados e desgastados, apegados ao plano original, edificamos o castelo sobre nuvens – e nem mesmo entramos, preferindo contemplá-lo a distância, no relento, a entrarmos numa casa mais modesta, muitas vezes mais acolhedora do querem nossos olhos ver.

O homem é um mendigo quando pensa e um deus quando sonha, disse certa vez Holderlin. Porém, não há solo mais movediço que as nuvens, nem deus mais impotente que o homem; um castelo suspenso em fantasia não tarda a ruir em realidade. O insensato se lança sob ele com os braços erguidos, como que para ampará-lo, e é esmagado.

Nas maiores pretensões reside um grande perigo, há de dizê-lo o imprudente Faetonte, que Zeus fulminou com um de seus raios por ter pretendido executar uma tarefa superior às suas forças, pondo-se e também a outros em grande risco.

Por isso, convém mais ao homem a arte do topógrafo do que a do arquiteto. Afinal, o terreno é herança do acaso, não cabe a nós escolhê-lo, e prepará-lo depende de esforço e talento. Quanto mais adequado é o castelo que aspiramos ao território que conquistamos, melhor será o resultado. Até mesmo uma choupana na floresta pode mostrar-se um refúgio mais seguro do que um palácio na imaginação.

Mas, ora, espere! Onde nos irão levar esses pensamentos? Esse pessimismo! Não há beleza na tragédia? Glória na derrota? O semblante do destino, sentado em seu trono, é comumente grave, mas eis que avança contra seus sapatos uma audaciosa formiga – e ele sorri. Olhemos além! O que há adiante, tanto para o modesto morador da choupana quanto para o soberano do castelo. Lá está: o nada.

A tranquilidade das privações de Diógenes pode ter causado inveja a Alexandre, acostumado a grandes preocupações, mas isso não o impediu de conquistar a Babilônia. Mais tarde, porém, encontramo-lo derrotado na Índia. Esqueçamos o castelo, as realizações, a segurança do palácio, alarguemos o terreno, com esforço e talento, mais à frente, sempre adiante. Dispensemos, principalmente, a sedução desse olhar limitado, essa visão estática do futuro, tolamente embelezada. O tempo não pára. Sejamos seu companheiro de viagem. Apenas avancemos.

quarta-feira, 18 de janeiro de 2012

Os mecanismos fundamentais da vida e o dualismo mítico

Desde que eu estava na escola, assistindo às minhas primeiras aulas de ciências, me intrigou a ideia de que a vida havia se originado a partir de um único ser, ao acaso, em um mundo primitivo e hostil. Afinal, se a existência da vida não fosse espontânea e natural, teríamos de admitir que estamos em conflito com o mundo, em vez de pensar que fazemos parte deste. Não era fácil para mim aceitar essa opinião, porque, além de nos ditar uma perspectiva pessimista diante da existência, me parecia inverossímil que toda a abundante e exultante vida deste planeta tivesse como ponto de partida um único instante, uma centelha em uma rara conjunção de circunstâncias.

Não tenho a pretensão de dizer, com estas palavras, qual é a verdadeira explicação científica para esse evento, mas apenas relatar como me foi explicado e como muitas vezes vi ser representada a versão mais aceita para o surgimento da vida.

Essas eram as minhas especulações na época, e a solução que me satisfez foi esta: na verdade, possivelmente, o caldo primitivo fervilhasse de vida, de complexos de moléculas que se organizassem em um tipo de metabolismo. Dessa maneira, os organismos vivos não seriam fruto de uma centelha, mas, pelo contrário, seriam resultado de um meio ambiente propício, propenso ao surgimento da vida. Conforme essa versão, não estaríamos em conflito com o mundo ao nosso redor, e a vida não seria considerada um fenômeno adverso, em oposição à probabilidade. Em síntese, não haveria uma batalha pela vida, mas uma celebração da natureza, cujos princípios seriam a razão direta da existência dos organismos vivos, e não uma improbabilidade, um golpe de sorte.

No entanto, contra minha versão pesava o seguinte fato: a semelhança fundamental compartilhada entre todos os seres vivos, das células do homem à mais simples forma de vida. Afinal, existe um incontestável parentesco genético entre as espécies, o que nos leva a admitir que provimos todos de um mesmo organismo, indivíduo. Esta ressalva me conferiu um dilema, que permaneceu sem solução durante muito tempo. Não que fosse objeto de preocupação, absolutamente. Trava-se somente de uma questão que despertava a minha curiosidade e à qual eu apenas raramente me voltava, por preguiça ou tédio.

Recentemente, outra ideia que me vem perturbando o espírito ofereceu sua explicação: propôs-me que prestasse atenção ao fato que não é a manutenção da própria vida dos organismos a sua única função vital. Isto é, não é apenas a preservação do indivíduo – que associo aqui à concepção de metabolismo – que constitui o mecanismo fundamental da vida. Existe outra função vital que é igualmente essencial para a definição da vida como a reconhecemos e que pode ser considerada, conforme minha visão de caldo fervilhante, até mesmo uma primeira evolução dos organismos: a reprodução. Não bastaria a preservação do organismo recém concebido, pois se o mesmo não fosse capaz de reproduzir-se – o que configura uma função bastante complexa e que podemos tomar em separado em relação à simples manutenção da vida do organismo –, a perpetuação de sua existência seria impossível. Nenhum organismo individual é capaz de manter-se vivo perpetuamente, portanto, a capacidade de produzir descendência é uma qualidade fundamental para perpetuação da vida. Sendo assim, poderemos considerar verossímil que uma sopa abundante de organismos individuais tenha criado as condições para o surgimento desse novo ser capaz de reprodução. Se aceitamos essa possibilidade, passamos a nos considerar não fruto do acaso, mas parte do desenvolvimento natural deste planeta, onde apareceram espontaneamente as condições favoráveis para o surgimento do ser do qual, na verdade, todos descendemos: em último instância, não apenas o organismo que se mantém vivo, mas o que se que reproduz.

Sem dúvida, uma explicação mais longa do que estou acostumado a dar sobre o que quer que seja – e nem sequer expus o tema de que realmente pretendia tratar. Porém, nem tudo pode ser dito de modo convincente em uma dúzia de frases. E se a leitura é cansativa (defenderiam certos amigos meus) o que se dirá da concepção do texto? Sejamos pacientes, o próximo parágrafo nos levará diretamente à questão.

De acordo com o que até então discorremos, para que nossa existência não seja vista como fruto do acaso, ou seja, um fato estranho à natureza e adverso à probabilidade, deveremos nos considerar descendentes não do organismo que subsistiu por um instante, mas daquele que reproduziu e, com isso, admitir que estas duas funções vitais, a sobrevivência e a reprodução, constituem o fundamento de nossas existências. Não é uma ideia extravagante. Aqueles que, ao final de uma argumentação, esperam sempre um ponto de vista excêntrico não buscam mais a verdade do que distrair suas inteligências. Se ao nos depararmos com um problema complexo se nos apresenta uma solução simples, podemos nos alegrar por pelo menos ter tornado a questão mais compreensível. Dito isso, abordemos finalmente o tema: não parece uma reveladora coincidência o fato de que o homem, em diversas culturas e formas de pensamento, tenham expressado a percepção de que o mundo é resultado de alguma forma de dualismo? Nas culturas arcaicas, masculino e feminino, luz e escuridão, caos e ordem; no cristianismo, bem e mal, sagrado e profano, material e espiritual; nas sociedades, moral e imoral, legal e ilegal, racional e irracional; na psicologia, ID e superego (proponho aqui que o terceiro elemento, o ego, configure uma espécie de síntese desses dois princípios), pulsão de vida e pulsão de morte, anima e animus, consciente e inconsciente. Eu poderia citar ainda princípios orientais, como Yin-yang, mas meu conhecimento dessas doutrinas é superficial. Poderíamos também nos lembrar das filosofias dualistas dos pré-socráticos, da questão da unidade e da multiplicidade ou até mesmo da dicotomia matéria e forma de Platão. Os exemplos de sistemas de pensamentos apoidos na concepção de dois princípios são abundantes na história das civilizações, e penso não ter de apresentar outros argumentos para, ao menos, sugerir uma associação entre estas duas coisas: a tendência do nosso intelecto para o dualismo e a existência de dois princípios fundamentais da vida.

Esta hipótese, de que há uma tendência para o dualismo na intelecção do homem e de que esta provém da influência que os dois princípios fundamentais exercem na nossa natureza, me veio à cabeça, como relatei no início, a partir daquela outra questão, de uma curiosidade de colégio, e atualmente me desperta a curiosidade tanto quanto aquela o fez na época. É possivel que a alguns a mera observação de uma coincidência não seja o bastante para estabeler uma relação direta entre ambos os fatos. Talvez lhes satisfizesse uma prova material, mas não posso sequer imaginar qual seria, de que modo isso poderia ser sugerido pelo conhecimento do funcionamento de um neurônio. Penso que, se houvesse tal explicação, esta seria de exposição muito mais complicada do que convém às explicações, conforme já ressaltei anteriormente. Nos contentemos, então, com a coincidência, se for o caso.

sexta-feira, 20 de agosto de 2010

A origem da culpa na Civilização Ocidental

Esta não será uma tese nova. Talvez uma maneira nova de expor uma tese antiga. Ou, ainda, é possível que nada, nas linhas seguintes, seja novo, o que, porém, não diminui seu valor. A ideia me ocorreu enquanto lia sobre mitologia grega, mas se refinou numa ida ao supermercado – uma dessas caminhadas produtivas.

Duas linhas de pensamento orientam, fundamentalmente, os rumos da nossa civilização: a herança grego-romana e a religião judaico-cristã. Resumidamente, a primeira nos propiciou um espírito empreendedor e prático diante do mundo; a segunda, uma moralidade caracterizada pela humildade e pela compaixão. A contradição resultante da síntese dessas duas tendências já é conhecida, meu objetivo não é apontar os indícios de sua manifestação na nossa sociedade, tampouco explicar seus mecanismos. Pretendo apenas tentar esclarecer, embora rudimentarmente, sua origem, à luz de certos aspectos dos mitos de cada uma dessas culturas.

Como ocorre a organização do mundo no mito grego? A vitória de Zeus sobre os titãs representa a submissão das forças caóticas da natureza a uma ordem artificial instituída pela ação de um indivíduo. A teogonia grega apresenta a natureza original como caos, ambiente hostil à prosperidade do homem, em que forças frequentemente contraditórias exercem seu poder desmedidamente. Não nos custa perceber essa representação como metáfora para o estado de desamparo do homem anterior ao desenvolvimento da civilização. Diante das forças da natureza, das intempéries, da abundância ou da escassez de alimentos, que precede a agricultura, das enfermidades, enfim, todos esses elementos imprevisíveis, o homem pouco pode fazer. Para que ele possa se beneficiar da natureza e atingir o bem-estar, é preciso ordem. Uma ordem convencionada, os gregos estavam cientes disso, estabelecida e mantida pela força, pela ação organizadora do indivíduo. O Olimpo, certamente, reflete a organização social que, na visão dos helenos, propiciaria a ordem necessária para a manutenção do bem-estar. Cada deus possui uma função, necessária e complementar às demais. Zeus, senhor do Olimpo, zela para que cada parte exerça seu poder de acordo com seus limites, evitando o desequilíbrio entre essas forças individuais. No mito grego, em outras palavras, o benefício do homem é alcançado pela submissão das forças essencialmente caóticas da natureza à ordem convencionada, artificial (em oposição ao natural), humana.

E o que nos diz a mitologia judaico-cristã? Opõe-se ao mito grego desde a criação do ser humano. Afinal, o estado original da natureza, para o homem, é o Éden, em que, ao contrário de encontrar-se desamparado diante de forças imprevisíveis, o homem vive na abundância e na despreocupação de um jardim, criado para satisfazer-lhe todas as necessidades.

Neste ponto, no entanto, é preciso esclarecer de que modo o homem adquire a capacidade de agir sobre a natureza: através do conhecimento. É por meio do conhecimento que a experiência proporciona que o homem se torna capaz de prever em que períodos do ano a plantação deve ser semeada, quando o fruto deve ser colhido, quanta água deve haver disponível e, até mesmo, o modo de levar a água até os campos. O conhecimento permite que o homem transforme e submeta a natureza.

No mito judaico-cristão, o ato de conhecer, representado pelo fruto do conhecimento, é proibido ao homem, constitui uma violação das leis de Deus. O pecado original é o orgulho, desde a queda de Lúcifer. A arrogância do homem, que Deus pune com a expulsão do Éden, é sua pretensão em conhecer, em adquirir poder sobre a natureza, podemos interpretar.

Desse modo, o homem perde o equilíbrio que desfrutava com a natureza e é lançado no mundo social, essencialmente caótico, em que Homo homini lupus. Mundo este sobre o qual Deus virá a agir posteriormente, instituindo suas leis, seus mandamentos.

Diante disso, alguém poderá perguntar: e qual é a relação disso com o sentimento de culpa, afinal? Ora, produtos que somos dessas duas linhas de pensamento, vivemos o conflito entre suas duas visões opostas. Por um lado, somos estimulados a agir sobre o mundo, em busca do nosso bem-estar, através do conhecimento. Obtendo, assim, a satisfação de nossas necessidades mundanas, ligadas ao corpo e à vida prática. Por outro, somos aconselhados a resistir aos apelos da necessidade, dos desejos, compelidos à resignação diante dos fatos da divina providência. O sentimento de culpa, característico da nossa civilização, advém desse dilema, desejamos aquilo que somos repreendidos por satisfazer. O tempora! O mores!